Coração vagabundo – parte 6

M. tem apenas 9 anos, mas já sofreu torturas, abusos e agressões inimagináveis e indescritíveis, por pessoas que deveriam protegê-la.

Quem escuta a história, logo se arrepia, espreme os olhos, contorce a boca, atônito. É o pior do ser humano escancarado ali, desenhado e palpável, na nossa fuça. Até a equipe do fórum, acostumadíssima com casos de violência, se chocou.

Foi assim que M. cruzou o meu caminho.

O pedido original foi para fazermos um passeio bacana, um dia leve para quem já tinha sofrido tanto.

Depois, passamos a acompanhá-la nas consultas ao plástico e dentista, providenciar remédios, um dia de princesa no salão. Mal pisquei e M. já estava ali, incluída no meu cotidiano.

E eu me vi apaixonada por aquela menininha que – inexplicavelmente – sorri o tempo todo.

M. é um raio de luz.

Termina as ligações dizendo “eu e vc somos divas, tia”. Não aceitou o penteado no salão do parque porque “vinte reais é muito dinheiro”. Cedeu a sobremesa caprichadérrima para outra criança, porque “ela queria mais do que eu”. Não quis decidir o prato no restaurante porque “tem gente passando fome no mundo, não seria justo escolher comida”.

M. é meu número. Sob medida, feita para mim.

Eu quero acolhê-la desde o primeiro segundo. Amor à primeira vista, daqueles que só acontecem nos filmes.

Só que M. não pode ser minha. Ela tem uma avó.

Uma pessoa simples, com situação social e educação limitadas, mas com o coração bom.

Essa avó mora muito, muito longe. Provavelmente, não terá condições de seguir o tratamento médico. Provavelmente, vai deixar as marcas físicas e psicológicas da M. caírem na rotina. Provavelmente, não investirá na sua educação.

M. deve virar estatística. Mais uma, entre tantas crianças sem oportunidade, esquecidas pela vida, que existem aos montes por aí.

Enquanto isso, tudo que posso fazer é escrever sua história, já sofrendo de saudade antecipada. Saudade da filha que nunca foi. Saudade de tudo que não viveremos juntas. Saudade do que poderia ter sido.

M. vai embora em poucas semanas e eu não estou sabendo lidar com a minha impotência.

Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim…

Um pensamento sobre “Coração vagabundo – parte 6

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