Essa semana teve festa no abrigo perto de casa e conheci uma família nova, que acabou de chegar.
São muitos irmãos, com idades variadas, todos analfabetos, vítimas de abuso, alcoolismo e uma série de tragédias, que não vêm ao caso. Basta dizer que foram tratados como bichinhos a vida inteira e agora têm medo até de tomar banho de chuveiro.
Para ajudar no processo de acolhimento, os responsáveis pelo abrigo perguntaram quais passeios os irmãos gostariam de fazer.
Choveram respostas típicas de criança, como “cinema”, “teatro”, “shopping” e “parque”. Até que um deles, do alto dos seus dez anos, soltou:
– Eu quero ir para a ESCOLA, tia.
E aí meu coração se esmigalhou. Fiquei me sentindo realmente estúpida por reclamar de bobagens, como acordar várias vezes durante a noite, a tachinha no pé ou o carro quebrado.
Fiquei pensando em tudo o que esse menino já sofreu e em tudo que ainda enfrentará pelo caminho, do bullying na escola à superação de traumas – que nem sei se será possível.
Pensei na injustiça, na fragilidade, na banalização e em tantas histórias como essa, se repetindo todos os dias, sem que sequer tenhamos conhecimento.
Tive vontade de voltar correndo para debaixo das cobertas e abraçar minhas meninas como se não houvesse amanhã.
Mas isso não ajudaria ninguém. Não faria a menor diferença no universo e, principalmente, não resolveria o problema desses irmãos.
Coração apertado, culpa, remorso, compaixão não valem nada, se ficarem apenas no papel. De nada adianta “sofrer por solidariedade”.
É preciso arregaçar as mangas, dar murro em ponta de faca, assumir responsabilidades e tentar fazer sua parte, mesmo que seja imperceptível no final das contas.
Se esse menino – que teria todos os motivos para desistir e se acomodar no conforto relativo da nova situação – decidiu que tudo que ele quer é recomeçar e ir para a ESCOLA, como EU vou desanimar?
Então, levantei, reuni forças e estou aqui, com o peito aberto, a esperança renovada, pronta para tentar mudar o mundo, nem que por mundo entenda-se apenas a vida de um desses irmãos.
Alguém comigo?
“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todos os dias” (Saramago).
#diasdecalvin
#correntedobem